Por Bremmer Guimarães

Para poder compartilhar da experiência criada pelo trabalho do diretor Guilherme Morais é fundamental se desprender de rótulos. E, antes de quaisquer outros, dos rótulos do próprio teatro. Teatro entendido como arte dramática, que carece de um texto fechado, de uma partitura definida para o ator e para o espectador, com personagens, enredo, princípio, meio e fim. Mais do que o sentido da peça, o que importa nas criações de Morais é o impacto que elas possam causar. Impacto que, nesse caso, dialoga com a força das manifestações políticas. A arte também pode ser entendida como um mecanismo para a problematização de questões sociais.

Na apresentação de Trans, Calor na Bacurinha e Derrame, na noite do dia 4 de novembro de 2014, no Prédio Verde da Praça da Liberdade, o aqui e o agora são determinantes. Jorge Dubatti já sugere que o teatro tem o caráter de uma experiência única e compartilhada, que nunca se repete, ou seja, uma peça é diferente a cada dia. Mas, no caso dos três espetáculos dirigidos por Morais, isso parece se explicitar, aproximando o teatro de uma performance, que se apropria do tempo e do espaço em que se insere, revelando o próprio processo, em vez de se apresentar como resultado ou obra acabada.

Em Trans, a proposição de compartilhamento se dá logo no começo: uma pessoa do público é convidada a abrir o espetáculo, seguindo as indicações que ouve num aparelho de MP4. O espectador é atuante e, assim como proposto por Zé Celso Martinez Correa do Teat(r)o Oficina, em seus espetáculos, atuante talvez seja também a melhor denominação para os atores em cena. Logo após o momento inicial, os corpos dos dois atores atuantes nos são apresentados. São dois seres, a princípio, iguais e que transgridem as noções de gênero, de feminino e masculino, de mulher e homem.

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Trans / Foto: Divulgação

Guilherme Morais e Ana Luisa Santos se assumem como eles mesmos, em vez de personagens, mas atuam e, mais do que isso, atuam junto à plateia. Jogam, a todo o momento, com os padrões da sociedade e com o comportamento humano. Ao longo do jogo, hora pensamos estar diante de duas mulheres ou de dois homens cis, hora de uma ou um travesti, hora de transexuais, ou mesmo de figuras andróginas. O que se problematiza no espetáculo é o corpo e não necessariamente a sexualidade. Corpo que, como vai se seguir, é justamente o dispositivo que possibilita que a arte em questão se apresente como um manifesto.

O jogo parece se evidenciar ainda mais na cena de improvisação em que uma das personas atuantes usa vários figurinos sobrepostos e vai tirando cada um deles, um por um, criando novas imagens, na tentativa de que o/a parceiro/a descubra que figura ela está representando. Há, nesse momento, uma discussão sobre os estereótipos de nossa cultura e também uma autocrítica: nem mesmo quem atua está livre dos preconceitos. O propósito da encenação não é pregar uma verdade única e absoluta, mas justamente gerar dúvidas para a nossa reflexão.

O lugar em que o jogo se insere também é explicitado: estamos numa sala de teatro. O que se apresenta não pretende propor uma desterritorialização do espaço. As lacunas entre uma cena e outra podem criar uma quebra no ritmo do espetáculo, mas, como ele mesmo parece querer romper o padrão das obras teatrais, isso não enfraquece a sequência das cenas. Ao contrário, pode ser um momento de pausa para que o público reflita, justamente, sobre o que está assistindo.

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Calor na Bacurinha / Foto: Joyce Athiê

Na sequência, Calor na Bacurinha apresenta mais elementos dramáticos que a antecessora, como personagens bem definidas e até um conflito, mas isso não torna a obra menos performativa. A música, tocada ao vivo por uma banda de rock, e a energia das atuantes, são elementos que se sobressaem quando assistimos à apresentação. O que vemos é a afirmação da sexualidade da mulher em contrapartida às tradições machistas de nossa sociedade.

Os corpos são determinantes para a cena. A nudez das atrizes serve para evidenciar aquilo que é escondido socialmente. A via escolhida para abordar as temáticas feministas é positiva, sem vitimização da figura feminina, e não existe juízo de valor sobre essa ser a melhor forma para se tratar do tema. A discussão do preconceito dá lugar à superação dele. Nesse momento, é interessante observar a reação e a atuação do público como performer. Para muitas pessoas, encarar a nudez ainda causa constrangimento.

Por último, Derrame se aproxima da dança contemporânea e parece ser a mais experimental das três obras. Os diversos atuantes no palco, segurando duas garrafas nas mãos, fazem movimentos, a princípio abstratos, de forma lenta e sincronizada. A impressão que temos é a de que o objetivo deles é derramar, em seus próprios corpos, o líquido que se encontra dentro dos recipientes que estão sendo carregados – como vai se confirmar ao longo da exibição.

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Derrame / Foto: Guto Muniz

Há referências da cultura pop nos figurinos, que nos remetem a Branca de Neve, Frida Kahlo, ao boneco de um restaurante de comida chinesa, além de outros personagens, com novas facetas e roupagens. O que se percebe é a desconstrução dessas figuras. As fantasias sugerem as máscaras do nosso dia-a-dia e das quais devemos nos desprender. As garrafas possuem diferentes formas e são de variadas marcas conhecidas pelo público. Estamos a todo o momento cercados por produtos e embalagens no nosso cotidiano.

Uma possível leitura sobre o trabalho é a de que se trata de uma crítica ao consumo e à indústria cultural. Tanto que, logo após a água ser derramada sobre a cabeça dos performers, eles perdem as suas forças, indo ao chão. A princípio, é difícil se desprender dos padrões, das bases culturais que nos sustentaram ao longo de toda a vida. Mas, em seguida, a sensação de prazer e liberdade toma conta dos corpos, que se levantam e dançam sem qualquer preocupação.

Especialmente nesse dia da apresentação, é interessante perceber como o teatro performativo ou a performance são mesmo artes do aqui e do agora, que não perdem seu potencial cênico mesmo quando têm seu processo explicitado. Em função da crise de abastecimento hídrico que afeta São Paulo e chegou a alertar Minas Gerais, o grupo optou por usar uma menor quantidade de água em cena do que em apresentações anteriores e revelou essa escolha ao público.

Em vez de a montagem ser comprometida, ela ganhou um novo viés, ambiental e político. O próprio espetáculo se derramando daquilo que o contém. Certamente, uma noite para lavarmos a alma e, como proposto pelas três experiências teatrais, deixar a repressão ao corpo escorrer pelo ralo.

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Derrame / Foto: Guto Muniz